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terça-feira, 16 de março de 2010

Soldados em greve

No Rio Grande do Sul os militares já costumam defender seus direitos desde o início da colonização européia. Saiba o que aconteceu contado por quem esteve pessoalmente em duas dessas revoltas, ocorridas nos séculos XVIII e XIX


 Entre 1741 e 1742 a fragata inglesa HMS Wager afundou[1] na Patagônia chilena. Mais precisamente na Ilha Wager, onde um grupo de caiaquistas encontrou em 2007 os restos de uma nau que pode ser a mesma[2] enviada na época pelo Império Britânico para dar combate ao exército espanhol. Após o naufrágio ocorrido neste local até hoje tão inóspito alguns navegadores ingleses sobreviventes conseguiram chegar, com muito custo, ao atual município de Rio Grande/RS.

Os relatos da aventura foram registrados por dois tripulantes da embarcação, o artilheiro John Bulkeley e o carpinteiro John Cummins, e deram origem ao livro “Uma viagem aos mares do sul”, lançado pela primeira vez em Londres no ano de 1743. Na publicação eles testemunharam a respeito de um motim ocorreu no recém fundado presídio de Rio Grande: no ano anterior a infantaria e o Regimento de Dragões que serviam naquela guarnição se rebelaram contra seus superiores devido a um enorme atraso no pagamento de seu soldo.                                                                                                 Possíveis restos do navio HMS Wager
                                                                                                                                           achados em uma região remota da Patagônia
                                                                                                            (Foto:  www.patagoniaincognita.com
Os navegadores britânicos, que foram muito bem recebidos pelos militares portugueses, puderam assistir de perto ao levante, quando o próprio Silva Paes veio de Santa Catarina para tentar resolver o impasse. Os soldados, com mais de vinte meses de atraso no recebimento de seus salários, se amotinaram ameaçando não permitir a partida do Brigadeiro enquanto ele não prometesse enviar dinheiro, roupas e provisões.

Bulkeley e Cummins contam que durante a revolta, iniciada dias antes de sua chegada a Rio Grande, alguns oficiais foram retirados de seus cargos pelos militares que ocupavam postos mais baixos na hierarquia, sendo substituídos por indivíduos aliados ao movimento, entre eles cidadãos civis. Somente o governador, o Major e o Comissário conseguiram convencer os soldados a mantê-los em suas funções.

A guarnição sofria também com a falta de víveres, que estavam sendo racionados por falta de reposição: “O guarda do depósito mostrou-me todo o estoque que havia, o qual, considerando-se o número de pessoas a serem mantidas por ele, era, de fato, muito escasso, e não duraria mais do que seis semanas, na base da ração distribuída recentemente” contam os marinheiros britânicos. Quinze dias depois apareceu um bote com tripulantes de um navio de provisões vindo do Rio de Janeiro. Porém o barco não pôde chegar ao porto[3] devido à dificuldade que as embarcações maiores tinham para entrar na Barra de Rio Grande, problema que continuou existindo até a construção dos molhes da barra no início do século XX[4].

Os tão esperados mantimentos só puderam ser entregues dias depois, e junto com a carga veio uma anistia concedida aos amotinados após a rebelião, lida pelo Brigadeiro em pessoa. Mas havia um porém: somente um terço do soldo em atraso havia chegado, enquanto o restante ainda estaria a caminho. A quantia poderia ser paga imediatamente, porém a maioria dos militares insistia em receber o valor integral. Alguns chegaram até a cogitar a possibilidade de passarem para o lado da Coroa Espanhola, que durante muitos anos disputou a região com Portugal e, duas décadas depois, conseguiu tomar Rio Grande temporariamente.


O comandante da guarnição, colocado neste posto pelos próprios soldados dias antes, e em quem eles confiavam mais do que no Governador ou no próprio Silva Paes, precisou entregar o comando. Bulkeley e Cummins descreveram com detalhes o momento no qual ele pôs sua arma ao ombro e foi tomar um lugar na fila junto aos soldados rasos, incentivando os colegas a aceitarem a proposta. A atitude fez com que o resto da tropa seguisse o seu exemplo, devolvendo os postos aos verdadeiros oficiais e se conformando com os termos propostos pelo Brigadeiro[5].

Mas o problema não era exclusividade dos militares de Rio Grande. Na época “o brigadeiro transformou-se numa espécie de inspetor das guarnições da costa, ocupando ao mesmo tempo em defender os portos, e disciplinar a tropa irritada com o atraso dos soldos, e a solidão dos quartéis de fronteira”, conforme o livro “História do Exército Brasileiro” (Estado-Maior do Exército, 1972) [6].

Motim na Princesa do Sul

Um outro levante desse tipo aconteceu no Rio Grande do Sul em 1829, na então freguesia de São Francisco de Paula, como relatou o mercenário alemão Carl Seidler em sua obra “Dez anos no Brasil” (Martins Livreiro, 1976). Ele teve a oportunidade de ficar alguns dias na atual Pelotas/RS, e contou sobre mais uma revolta na qual os militares precisaram lutar por um direito básico: o seu devido pagamento.

Seidler relatou que na época ele estava há mais de um ano sem salário, tendo conseguido receber uma quinta parte do valor após presentear o general em chefe com um lagarto que fora capturado nas proximidades da casa onde estava hospedado: “O meu presente não errou o seu bem calculado alvo. O assado de lagarto enterneceu o coração do visconde e poucos dias depois recebia eu uma ordem escrita pela qual na tesouraria me pagariam três meses de soldo”. Na época os alemães do 27º Batalhão de Caçadores e o resto das tropas acampadas em Piratini foram deslocadas para a povoação, onde chegaram esfarrapados, exaustos de fome e isolados uns dos outros.
Além das grandes dificuldades pelas quais os militares passaram durante a campanha, seus salários também estavam atrasados. Estes fatores, unidos à chegada do Natal e aos incentivos feitos pelos habitantes locais que visavam lucrar com o dinheiro dos soldados tornou a situação um verdadeiro barril de pólvora. Segundo Seidler, na noite de natal os comerciantes locais chegaram a oferecer bebida a crédito aos soldados, tudo para incitar uma revolta. “E dessa maneira atiçaram a fogueira que a cinco meses lavrava sob as cinzas. Não falhou o visado efeito. Desde a manhã seguinte, irrompeu totalmente a labareda” escreveu Seidler.

A falta de pagamento fez então com que as tropas se recusassem a obedecer às ordens de seus superiores, e nem mesmo os apelos feitos pelos oficiais garantiram o fim da paralisação. Dois deles tentaram inclusive recorrer à violência, mas foram cercados e tiveram que fugir para salvar suas próprias vidas. E houve receio de que a situação pudesse chegar ao extremo, quando foi ordenado aos oficiais que encilhassem seus cavalos para escoltarem o Marechal Lecór no caso de uma possível fuga. A exigência do batalhão era receber no mínimo dois ou três meses de soldo atrasado, e ameaçava arrombar os cofres da tesouraria.

Carlos Frederico Lecór, o visconde de Laguna, mandou então os soldados escolherem três representantes para uma negociação. Nela um dos líderes da rebelião declarou que as tropas estavam cansadas de serem ludibriadas com falsas promessas e “que finalmente estavam resolvidos a gastar a pólvora e o chumbo, que o Estado fornecera para a guerra contra os argentinos, aplicando essa munição contra aqueles que por mais tempo mantivessem o dinheiro dos soldados aferrolhado nas caixas da tesouraria”.

A colocação fez com que o visconde liberasse dois meses de soldo. Porém depois foram listados os nomes de 40 pessoas que teriam incitado a revolta. Estes foram transferidos para Porto Alegre, onde “pela mínima falta os soldados da lista negra sofriam ao bel prazer do comandante 150 a 200 chibatadas, e mais algumas de quebra, bem puxadas e bem contadas”.

Felizmente castigos corporais deste tipo já não são mais aceitos nos dias de hoje. E, diferente do que acontecia em outras épocas, hoje os militares podem exigir o que lhes é devido sem medo de retaliações. Porém, mesmo assim, continuará sendo uma lástima esses bravos homens precisarem deixar de defender apenas a paz e a ordem para lutarem também por seus próprios direitos.

Por: Bruno Farias (17/03/2010)
ILUSTRAÇÕES:
1. Restos de uma antiga nau encontrada em 2007 por caiaquistas na ilha Wager, na Patagônia chilena (http://www.patagoniaincognita.com/)
2. Planta do forte Jesus Maria José, construído em Rio Grande no ano de 1737 (Reprodução)
3. Oficial e soldado do Regimento de Dragões de Rio Grande, século XVIII (Reprodução)
4. Brigadeiro Silva Paes (Reprodução)
5. Oficial e Praça de Caçadores, Uniforme de Gala, 1822 (Reprodução)
REFERÊNCIAS:[1] Guilhermino Cesar “Primeiros cronistas do Rio Grande do Sul: 1605-1801”[2] “Reporte 3” – Site Patagônia Incógnita – 13/02/2007 - http://www.patagoniaincognita.com/ [3] Guilhermino Cesar “Primeiros cronistas do Rio Grande do Sul: 1605-1801”[4] FARIAS, Bruno Martins. MEMÓRIAS LEONENSES: personagens, lugares históricos e lendas de Capão do Leão/RS.[5] Guilhermino Cesar “Primeiros cronistas do Rio Grande do Sul: 1605-1801”[6] História do Exército Brasileiro. Brasília, 1972, Estado-Maior do Exército. Gráfica do IBGE.

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